No País de Zilbraniz ou o Avesso do Espelho

Crônica sobre um precioso achado, ou como um humilde Diretor de Escola Pública descobriu e descreveu o país ideal.
CAPÍTULO I
Inocêncio Apóstolo
Dentre a gente comum muitos se vão “desta para melhor” (noto que este dito popular deve ter surgido na boca de algum demagogo, uma vez que jamais se pôde provar tal assertiva, e, de moto próprio, ninguém deseja experimentá-lo) e nada deixam aos pósteros, senão um nome na fria lápide, que o tempo desgastará, fazendo-o diluir ao cabo de uma geração. Outros rabiscam crônicas, memórias, poemas, lançando-os às gavetas. Náufragos, atirando ao mar suas garrafas, à espera de quem as recolha e tome conhecimento de sua mensagem.
Alguém, menos atento, teria dado fim àqueles manuscritos, não eu, de aguçado espírito bisbilhoteiro, ao varejar os guardados de meu antecessor, repletos dos mais variados e estranhos documentos, como sói acontecer nos de todos atarefados diretores de escola pública. Fora um achado extraordinário.
Não revelarei o nome do ilustre confrade e, muito menos, o do estabelecimento de ensino, sobre os quais, por questão de ética, devo guardar sigilo. Tratarei o insigne colega de Inocêncio Apóstolo, nome fictício, é claro, pois não pretendo ferir suscetibilidade de quem quer que seja.
Antes de dar conhecimento ao caro leitor dessa importante narrativa, faz-se mister elaborar uma curta biografia do focalizado, obtida aos retalhos de relutantes subordinados de boas e más línguas e índoles. Fixei-me nas más, por virem acompanhadas de elevado senso crítico, expurgando laudatórios depoimentos post-mortem (“no fundo era pessoa de bom coração... sofreu muito no final da vida... você sabia que era muito caridoso. Essas coisas”). Estes implacáveis depoimentos diziam-no, em início de carreira, atrevido Dom Juan. No entanto, depois de infausto acontecido, Inocêncio transformou-se num ser solitário, frio e calculista, tanto nos afazeres da profissão, como nas coisas materiais mais comezinhas.
Do pouco que pude apurar, dois fatos ilustram com clareza as fases vividas pelo brilhante e infeliz colega. Sobre a primeira fase do confrade, aquelas línguas viperinas narraram-me pecados veniais e mortais quanto ao seu, então, comportamento libidinoso.
As serviçais reclamavam ter ele a mania de apalpá-las numa parte do corpo em que o pudor me impede de mencionar, quando as apanhava solitárias a vassourar classes e corredores ermos; mestras ínclitas e de douradas idades evitavam ver-se à mercê do nosso então efusivo fauno. Abordava-as, insinuando-se com convites ambíguos, mas tendente a se esclarecer, conforme a interlocutora demonstrasse alguma aquiescência. Neste ponto, mostrava-se extremamente despreconceituoso - uma de suas grandes virtudes.
A nenhuma delas discriminava, pois não o atraía o aspecto estético ou cutâneo, mas o gosto pela conquista. Porém “ó temporis ó mores”, um dia, nosso colega provaria o fel da desilusão, fazendo-o abandonar aquela personalidade sodomita (ou seria gomorrita?).
Um pouco constrangido narrarei o que me contaram desafetos seus. Acreditara em seu peculiar talento sedutor com a professorinha Catarina e marcaram encontro, junto à igreja de São Judas, quarta feira de certa semana, de um certo ano, que ninguém soube precisar, à tardezinha, quando as sombras de lusco-fusco conseguem esconder muitas patifarias de certos seres humanos. Não se sabe, exatamente, se obteve êxito na empreitada.
O fato é que, na quinta-feira, Apóstolo aparecera, na escola, portando uns imensos óculos escuros, manquitolando da perna esquerda. Professor João Rosa deixara, sobre a mesa, o jornal que estivera lendo. Não reparara o docente, num canto da página policial, notícia miúda, dando conta de um espancamento sofrido por “Inocêncio de Tal”, cujo sobrenome, os repórteres não conseguiram identificar, posto que a vítima, uma vez livre do agressor, desabalara pela avenida próxima.
A reportagem não obtivera do furibundo brutamonte senão algumas palavras de agressivo deboche ao agredido: “ainda mato esse filho-da-mãe” (a seriedade deste relato não me permite introduzir termos acanalhados, hoje de livre curso entre os sôfregos adeptos do ludopédio, ao se referirem à progenitora do elegante senhor de preto que o arbitra). Com certeza, o caro leitor adivinhará a que qualidade de mulher-mãe se referira o desafeto de Apóstolo.
Com surpresa, todos notaram o súbito desaparecimento da professorinha, às pressas substituída (ao tempo que isso era possível). Datam daí as profundas mudanças operadas na forma de ser de nosso personagem, segundo afirmam os contemporâneos do acontecido, surgindo no Apóstolo, aquela solidão, calculismo e frieza, próprios da profícua segunda fase da vida do colega, a de emérito condutor da juventude.
Ele, que tudo deixava a critério de seu direto auxiliar, agora, buscava coibir malfeitorias do alunado, assumindo postura de educador. Reveladoras dessa nova e cartesiana personalidade foram as ações perpetradas, de ora em diante, em favor da formação dos insubordinados.
Regra geral, os pequenos recebiam bons piparotes a guisa de se emendarem; quanto aos maiores, sopesava o mestre, tamanho e vigor físico, para evitar desagradáveis e adolescentes reações. Quanto mais avantajado o transgressor, mais se inclinava Inocêncio ao diálogo.
De loquaz diretor, tornou-se reservado e distante de docentes e serviçais (exceto quando os visitava aos sábados e domingos, às horas das refeições), mantendo-os permanentemente ocupados, até mesmo nos recreios, obrigando-os a merendarem com os pirralhos, a fim de não perturbarem suas longas escrevinhações, que todos imaginavam relacionadas às incessantes tarefas burocráticas, mas que se referiam à sua formidável descoberta.
Sabia-se que, neste novo período de vida, se dedicou a prolongadas viagens por este mundo de Deus. Custa a crer que um simples diretor de escola pública pudesse se dar ao luxo de conhecer tantas terras, muitas das quais absolutamente desconhecidas de qualquer vivente, conforme revelam seus escritos. Mas a que preço, meu Deus! A que preço! Contou-me um de seus detratores ter sido, por algum tempo, confidente de Apóstolo. Na ocasião, este se abrira sobre as opções que tivera de fazer para permitir-se o regular turismo.
Renunciara ao casamento, depois de calcular, item por item, as despesas que acarretariam a constituição de um lar: manutenção da casa; as vaidades da noiva (que não trabalhava e nem pretendia fazê-lo); os custos mínimos de alguns rebentos, que o determinismo biológico lhe imporia, seguidos das correspondentes aporrinhações - doenças dos pequerruchos, por quatro ou cinco anos, tempo de carência para o ajuste de qualquer organismo humano, entre outras despesas, cujo montante lhe pareceu imenso.
Deduziu de si para si: “Viro-me com as mulheres de vida fácil (assertiva de difícil aceitação), que não me trarão despesas irreversíveis”.
Assim pensou, assim fez. Rosinha foi dispensada, após cruel exposição de motivos do eterno noivo. Dessa forma, suas economias foram investidas no projeto de correr o mundo.
A cada férias, recessos, feriados prolongados e uma ou outra escapada, acobertada por circunstanciado atestado médico, presenteado por um conhecido do departamento, eis nosso personagem, “turistiando” pelos quatro cantos do planeta.
Soube, ainda, pelo mesmo informante, ter-lhe dito Inocêncio objetivarem tais viagens descobrir uma terra, onde tudo funcionasse à perfeição. E, pelo que pude constatar pela leitura de seus manuscritos, Apóstolo parece ter encontrado a sua utopia.
Antes de dar a público tão preciosa crônica, devo informar ao caro leitor sobre os infortúnios acometidos ao nosso colega, nos derradeiros meses de existência. Matou-o, aos poucos, abdicar de suas produtivas viagens e uma estranha peste, grassando as escolas públicas, cuja principal vítima era, quase sempre, o dirigente maior da unidade.
Essas desgraças devem ser explicadas para o entendimento do contexto. O salário de diretor de escola pública, que nunca fora grande coisa, baixou em níveis de sobrevivência, convencendo-o da sábia decisão de ter renunciado a constituição de um lar. Mas isso não o consolava do fato de, aí por diante, obrigar-se a desistir dos estudos, quase concluídos, sobre o país perfeito, há muito descoberto, para o qual viajara regularmente e, sobre o qual, escrevia, obsessivamente.
A partir de então, notavam os circundantes o visível definhamento de Apóstolo, agravado pela manifestação de um gravíssimo vírus, o DO-ESP, mortal moléstia, adquirida do contato cotidiano com a legislação normativa, emanada dos órgãos centrais (não os do corpo humano, é claro), que redigida de forma cabalística, era desaconselhada para leituras individuais. Mas como o auto-suficiente Inocêncio insistia em fazê-las, contrariando orientação expressa de especialistas do comportamento humano, prescrevendo leituras e interpretações conjuntas, fatalmente, adoeceu.
O progresso da enfermidade levou-o a terríveis alucinações, compelindo-o, com regular freqüência, a sair pelos corredores do colégio a rasgar-se até a nudez e a gritar palavras desconexas, entre as quais percebiam os assustados transeuntes das imediações, apenas as de baixo calão, contra a administração superior acusada, em escandalosos brados, de agentes sabotadores da educação.
Contido a pancadas por fornidos servidores, pois não havia outra forma de acalmá-lo e levado à direção, ali se quedava por horas, num tumular mutismo, quebrado somente pelo ruminar dos papéis, causadores desses desequilíbrios. Tal comportamento ainda mais lhe comprometia a saúde, contribuindo para o abreviamento de seus dias.
Uma noite, encontraram-no agonizando à mesa. Respirava com dificuldade, a boca repleta de jornal oficial misturado à baba, escorrendo por todos os orifícios do rosto. Com muito custo, foram retirados os recortes, formando longuíssima gravata de papel. De nada adiantaram os primeiros socorros (puro eufemismo, pois, para Apóstolo, seriam os últimos). Nosso confrade já não recebia sangue e oxigênio no cérebro. Segundo consta, suas últimas palavras refletiam o ponto mais grave a que pode chegar o delírio “in-extremis” DO-ESP: “ESSA RESOLUÇÃO EU NÃO AGÜENTO! VOU-ME AO PAÍS DE ZILBRANIZ, POIS LÁ REPOUSAREI FELIZ”. E expirou.
Consternados, os atendentes logo notaram no finalzinho do papel ejetado da boca de Inocêncio, números de idênticas centenas: Lei 35.416, combinado com o Decreto 74.416, Resolução 84.416... Tais coincidências substituíram nos condoídos servidores, a emoção do momento pelo mais aguçado espírito de cobiça.
Ciosos de uma milhar para o jogo do bicho, vício muito alastrado entre trabalhadores de baixa renda, anotaram-no compulsivamente, abalando para um chalé próximo, abandonando aquele corpo exangue. Contudo, almas caridosas, que havia e ainda há, nesta escola, cuidaram dos preparativos e enterro do finado confrade, posto que parentes, se é que os possuía, jamais reclamaram os despojos do nosso sofrido colega.
Tão sórdida atitude, por parte de nossos serviçais escolares, não deixei de recriminar. Enfim, perdoei condescendente que sou com as fraquezas humanas, mormente, às desses pobres viventes, carentes sempre de um achego em seus diminutos vencimentos, ao vislumbrá-lo naqueles fatídicos números. Mas, ó justiça divina a se abater sobre os gananciosos, nada ganharam com tão mesquinho comportamento ao abandonarem Inocêncio. Lembro-me, com nítida clareza, de que, naquele dia, deu macaco na cabeça.
Atentaram os caros leitores para as últimas palavras do nosso confrade? País de Zilbraniz. Perceberam? Referia-se Apóstolo à Nação Perfeita, descrita nos manuscritos, que, de hora em diante, levarei ao seu conhecimento.
Notarão os leitores ter o nosso cronista feito algumas considerações sobre si, ao longo de seu relatório. Alguns recriminarão o autor dessas linhas por não tê-las introduzido na breve biografia do Apóstolo.
É que o rigor, a que me impus ao lançar-me nesta empreitada, obrigou-me a expurgar depoimentos autobiográficos, a meu ver, sempre tendentes a minimizar pecadilhos e amplificar virtudes. Justificado o procedimento, passemos ao importante relato.
CAPÍTULO II
Sobre a intenção de explicar meu ideal
Reservo-me o direito de pouco declarar sobre minha vida. Interessa-me dar conta de um especial país por mim descoberto ao longo de muitas viagens, a que me propus, num determinado momento da existência. Tudo sacrifiquei pelo meu ideal.
Não me casei, não bebo, há muito deixei de fumar e em boa hora, não pelo vício em si e seus denunciados estragos à saúde, mas pelo preço a que chegou o produto, face à ganância do Estado falido. Insistindo em ganhar dinheiro com a desgraça alheia, por meio de violenta taxação do produto.
Desde muito não vou ao cinema nem ao teatro; pouco me atraem os prazeres da mesa. Gasto o pouco que ganho parcimoniosamente, moro em modesto apartamento de sala e quarto, comprado naqueles tranqüilos tempos do BNH, cujo endereço nunca revelei a ninguém para não ser importunado, principalmente, pelos que me circundam no colégio.
Esta vida, quase monástica, alimenta comentários desairosos a meu respeito entre os linguarudos, mas pouco me importo. Todos sabem que, em priscas eras, dei sobejas provas de virilidade, depois é que me tornei um “heterocasmurro”.
Quando me dispus a pesquisar novas terras, organizei minha vida de forma a assegurar os recursos necessários.
Vendi meu telefone, controlei, à exaustão, o consumo de água, luz, gás, jornais e livros (estes os filo da biblioteca da escola ou, de um ou outro descuidado docente), consumindo-me significativas fatias do apertado rendimento.
Economizei nas refeições, realizando-as quase todas no colégio, submetendo-me às aguadas e insossas merendas, que os famélicos pequenos devoram “piranhescamente”, visto constituírem, com certeza, sua única alimentação diária.
Aos sábados e domingos visito meus subordinados, à guisa de providências a serem tomadas quanto a este ou àquele assunto, além de estreitar relações de amizade. Faço-as geralmente, à hora do almoço, para o qual sou costumeiramente convidado, fato que, acredito eu, os honra sobremaneira, pelo menos aparentemente.
Este pragmatismo me trouxe vantagens: obrigou-me a estar no estabelecimento às primeiras horas da manhã (para desgosto de algumas professorinhas, alheadas da pontualidade), posto que dona Aurora, a merendeira, com suas idiossincrasias, teima em fechar o refeitório, após o sinal de entrada, recusando-se a servir quem quer que seja, depois do ensurdecedor ruído. Para não perder mais um funcionário, não a contrariava, de sorte que a minha primeira refeição se dava às 6h 45 min. As outras seguiam a trilha de dona Aurora.
Madrugar levava-me a dormir com as galinhas, seguindo-se, daí, que era chegar em casa e cair nos braços de Morfeu (favor, não obrarem equívocos, trata-se do deus do sono, segundo a mitologia grega).
Em noites mais claras, sequer as luzes acendia. Um rápido banho pela manhã e lá estava eu à espera do ônibus, cuja passagem, às vezes, me saía de graça, pelo esquecimento da carteira e amizade feita com o cobrador. Ao final do mês, contabilizava ganhos respeitáveis, todos eles depositados, religiosamente, numa Caderneta de Poupança, investimento seguro, quando não nos aparece algum reformador da economia, drogado com supositórios, disposto a apoderar-se dos nossos parcos recursos, transformando-os em espoletas para seu revólver antiinflacionário.
Ao cabo de algum tempo, pude pôr em prática meu programa turístico de muitas formas econômico. Além da cara passagem, pouco gastava no exterior, devido à vida quase ascética a que me acostumei. Sabedores deste meu lazer, não faltaram línguas viperinas a cochichar maldades atentatórias à minha honestidade, enquanto administrador da pequena renda escolar. Dei as costas à maledicência, debitando-a ao negror da natureza humana.
Este relato, enquanto tive forças, escrevinhei no colégio, nos poucos momentos deixados pelos afazeres pedagógicos e burocráticos, pois sempre me recusei a realizá-los em casa. Fazê-lo ali, custar-me-ia gorda conta de eletricidade e comprometimento da visão, acarretando, com certeza, despesa com oculista, pela hora da morte.
Por outro lado, dada a localização do meu apartamento, em plena Major Sertório, estar acordado até altas horas da noite poderia provocar-me pensamentos lúbricos, prazerosamente satisfeitos pelo excesso de oferta, logo abaixo de minha janela, compelindo-me a apanhar borboletas e borboletos (hoje, já não se sabe mais quem é quem!) esvoaçantes para acalmar-me os desejos.
Dormir e dar asas à imaginação sempre me pareceram mais compatíveis com meu modesto modo de vida e, consecução dos objetivos, aos quais me propus. Cair em tentação significaria sacrificar proventos em detrimento de meu ideal.
Quem conhece de perto o cotidiano de um diretor de escola pública, pode calcular o atanazamento a rodear-me na composição desta obra.
Escrevo em meio à balbúrdia e as aporrinhações da profissão: “Seu diretor, a torneira do pátio está vazando, a criançada molha-se toda, que, que eu faço?...”. “Corra aqui, o Chiquinho arrebentou as fuças no corredor, está botando sangue por todos os poros...”. “Pra dentro da classe, seus moleques...”. “O professor puxou cabelos e orelhas do meu pequeno, não vai tomar providências, seu diretor...”. “Assine rápido este ofício, seu diretor, tem de ser entregue até o meio dia, senão...”. “Reunião amanhã? De novo?...”. “Com licença, seu diretor, gostaria de apresentar aos alunos este brinquedinho pedagógico, é possível?...”. “Estamos oferecendo uma bolsa de estudos, to-tal-men-te gra-tui-ta a seus alunos, apenas necessitamos que preencham uma pequena ficha cadastral, pode ser?...”. E por aí vai.
Não sou escritor, longe disso. Tropeço nas vírgulas, trombo com as concordâncias, esqueço acentuações, engano-me com o tempo dos verbos, entre outros pecados idiomáticos dos quais os puristas jamais me absolveriam. Também esta língua portuguesa vive a nos oprimir! Verdadeira ditadura sobre a livre expressão. Não é à toa o surgimento de movimentos libertários contra os totalitarismos normativos. Em boa hora, chegam-nos ares renovadores neste campo e que só poderiam vir de portenhas obreiras da lingüística internacional, orientando as mestras a libertarem as pobres crianças dessas excentricidades ligadas ao falar e escrever, permitindo-lhes darem livre curso à criatividade espontânea.
Afinal, concordo em gênero, número e grau, deverem os pirralhos construir o seu bem dizer a partir do sonoro linguajar aprendido pelas ruas, lares e meios televisivos, plenos de corretas construções vocabulares. Ora, se conseguimos desvendar, verdade seja dita, com grande dificuldade os garranchos e o balbuciar de precárias orações dos pequenos, médios e grandes educandos, ninguém tem o direito de corrigi-los e censurá-los (o que poderia causar-lhes irreparáveis traumas, quais sejam, aprenderem o bem falar e o bem escrever) nas suas mnemônicas transmissões caligráficas e verbais. Houve comunicação, pronto, acabou-se... Normas gramaticais são coisas de desocupados, creio eu.
Por essas e outras razões é que me cansei deste país no qual, até hoje, só pude constatar incoerências, má fé e completo desrespeito pela Res Publica. Muitas vezes, pensei em me mudar para outras plagas, como o fazem inúmeros habitantes de uma certa cidade das Minas Gerais, mas, logo, percebi, não valer a pena tal aventura (isso, antes de descobrir Zilbraniz).
Nunca fui dado aos afazeres domésticos e braçais, por força até da educação esmerada, recebida no lar, considerando-os exclusivas tarefas femininas e das classes destituídas de luzes. Quanto às tarefas domésticas, verdade seja dita, os tempos mudaram e, hoje, se vêem marmanjos orgulhosos, auxiliando esposas e esposos, preferencialmente, quando uma câmera de televisão ou reportagens de importantes periódicos busca demonstrar, “in loco”, a igualdade dos sexos dos homo e heteros, no mundo hodierno.
Inclino-me à leitura e reflexão, hábitos não condizentes com a forma de sobrevivência daqueles que se auto-exilam.
Vai daí que, em certo momento de minha vida, resolvi pesquisar a existência de um país ideal. Extremou-se a idéia, depois de grande violência contra mim, praticada por um desses desqualificados, passando impunemente pela grande urbe, agredindo seus semelhantes por da-cá-aquela-palha.
Namorava eu, em meu tempo de doidivanas, por detrás de um templo, a horas tantas, e eis que, no auge do êxtase amoroso (mais poético do que o sucedâneo utilizado por entrevistados em “talk-shows”, quando revelam candidamente seus hábitos sexuais), surge um desses trogloditas, invejosos do prazer alheio.
Confundindo a moça com a qual eu trocava carinhos com sua esposa, o homem enlouqueceu. Atirou-se sobre a pobre indefesa cobrindo-a de bofetadas.
Tentei contê-lo, chamando-o à razão. Procurei desfazer o equívoco, pois não sou pessoa dada à violência.
Qual não foi minha surpresa, quando esta, escapulindo-lhe das garras, desembestou rua abaixo, desaparecendo qual nuvem passageira, deixando-me à mercê do indigitado.
Adepto da não resistência à brutalidade apenas pretendi defender-me, escudando-me em meus braços estendidos. Uma saraivada de socos e pontapés prostrou-me, rolando eu pelos íngremes paralelepípedos.
Se não aparecessem almas cordatas e apaziguadoras entre as quais não se incluía a mãe de um aluno da minha escola, linguaruda, e que não me tinha em boa conta -, com certeza, daria o troco, ao abusado, pois me erguia disposto a colocar minha indignação nos punhos.
Contudo fui aconselhado a desistir do intento, à vista de estarem os apartadores convictos de que o agressor não passava de um lunático. A contragosto, deixei o local, para que o incidente não se transformasse em mais uma dessas tragédias da grande cidade.
Diante do acontecido, eu, que sou visceralmente contra a pena de morte, lembrei-me dos tempos do grande “Gengis Khan”, empalando seus mais humildes ofensores. Não baixei de minha condição, tinha um nome a zelar e o furibundo era um ninguém. Tal injustiça me fez sonhar com uma terra de paz, tranqüilidade, bom senso, justiça enfim. A partir de então, procurei-a com sofreguidão. Inicialmente, visitei países que em nada diferiam do nosso, mas, finalmente, encontrei aquele com que sempre sonhei, cujos usos e costumes afinavam com minha utopia. Infelizmente, foi uma descoberta tardia, posto que estou de malas prontas para a eternidade, infectado que fui pelo maldito vírus DO-ESP, consumindo-me aos bocados.
Não me atrevi a mudar-me para Zilbraniz, pois as autoridades sanitárias dessa modelar Nação mostram-se extremamente cautelosas com tal praga que, em determinado momento, também, se alastrou pelos estabelecimentos de ensino público zilbranizense, matando numerosos dirigentes.
Assim, nunca tentei ultrapassar, mesmo incógnito, as fronteiras de Zilbraniz, depois de descobrir-me doente. Resta-me o consolo deste relato, quero crer capaz de motivar eventual leitor, revoltado com as nossas cotidianas mazelas e incontornável miséria, a buscar refúgio nessa terra de delícias das quais provei, inebriado.
Ah, antes de dar início a minha narrativa, devo esclarecer aos leitores que a língua zilbraneza é muito semelhante à nossa. Apenas determinadas palavras são grafadas em suas terminações de forma inusual entre nós. Assim, se não me enganei na ortografia, as reproduzi tal qual escrevem os zilbranizenses.
Ao longo de minhas pesquisas sobre Zilbraniz, deparei-me com notável documento no qual se narra em versos a descoberta dessa maravilhosa terra. Todavia, espero que o leitor não estranhe o estilo um tanto quanto cáustico do nosso inspirado bardo, que as más línguas da época apelidavam de “O Zarolho”.