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1798 - Os heróis esquecidos - O Romance da Inconfidência Bahiana

1798 - Os heróis esquecidos - O Romance da Inconfidência Bahiana

Conheça as obras literárias do Gonzaga Pinto

1798 - Os heróis esquecidos - O Romance da Inconfidência Bahiana

1798 - Os heróis esquecidos - O Romance da Inconfidência Bahiana

Capítulo 1


Homens misteriosos tramam na noite


A noite chegava trazendo brisa fresca à cidade de Salvador, batida pelo inclemente calor naquele verão de l797.

Pelas ruas centrais, onde se localizava o Terreiro de Jesus, praça fronteiriça ao antigo Colégio dos Jesuítas, um espetáculo repetia-se noite após noite: a dança de negros acompanhada por tambores e atabaques, percutidos com precisão e entusiasmo por escravos taludos. A platéia seguia os requebros e umbigadas com ritmadas palmas, integrando-se naquele divertimento, que os padres criticavam, veementemente, em seus púlpitos. No clímax da dança, os pares pareciam fundir-se levando os curiosos a gritos alucinados. O alarido estremecia a “gente honesta”, recolhida em sua morada.

Vez por outra, a ronda policial, em seus coloridos uniformes, era atraída por sangrentas rixas na Praça da Piedade, não muito longe, valhacouto de marginais e putas, onde se juntava, segundo dizia-se: o que de pior existia na capital baiana.

Em muitos pontos da cidade, meretrizes de vários matizes e raças faziam o pregão de seus sexos, procurando a companhia de desocupados rapazes para transmitir-lhes as misérias que carregavam. A maior parte dos malandrins, às vezes, recusavam-nas, no que eram replicados por uma enxurrada de impropérios.

Pelas portas das igrejas, amontoavam-se todos os tipos de miseráveis: bêbados, aleijados, leprosos, que se misturavam de forma promíscua. Alguns agonizavam, expirando ali mesmo, ao cabo de uma noite, para serem recolhidos de manhã, pelos soldados do governador ou por alguma alma caridosa.

As famílias não se atreviam a deixar suas casas, às primeiras ave-marias. Corriam grossos ferrolhos às portas, certas de que, malfeitores, vagando pelos becos tortuosos, não conseguiriam pôr em perigo suas vidas e seus bens.

Senhores, crias e escravos, reunidos em torno do oratório, recitavam intermináveis ladainhas, procurando remir os pecados do dia.

A quase ausência de luz, pelas vias, fazia com que os passantes pisassem poças fedorentas, repletas de detritos, nunca removidos, que a população insistia em atirar às vielas a circundarem suas moradias.

Nos cemitérios da Misericórdia e dos Soldados dos Regimentos, onde negros desleixados abandonavam corpos insepultos, a viração trazia odores pestilentos a boa parte da cidade. Mas a população parecia acostumada a esses cheiros, visto constituírem, seus quintais e imediações, imensas lixeiras com todo o tipo de sujeira, apodrecendo, ao tempo.

Face à inexistência de limpeza pública, não era incomum, em determinadas épocas do ano, sofrer a população as mais devastadoras epidemias, entre as quais predominava a varíola.

Botequins, impropriamente, chamados de “Cafés”, faziam honra a imundície encontrada por toda a parte. Neles, a população marginal empanturrava-se de aguardente para enfrentar a longa noite. Lá estavam: o negro velho alforriado, por desserventia ao amo; o marinheiro, sem rumo nem porto; as prostitutas, procurando seu ganho e os soldados a gastarem os vinténs do magro soldo.

Vivia-se, em tranqüilidade e abastança, nas residências dos senhores rurais, à Rua de São Pedro, de São Bento e da Praia, na Cidade Baixa, onde se localizavam as residências dos opulentos comerciantes portugueses e baianos.

Continua....